terça-feira, maio 29, 2007

Unidade

Os ziguezagues que fiz
não os dou por incidentes
a desviar o meu rumo;
enquanto perdi o tempo
ganhei ciência de amá-lo
agora que vale a pena

E sempre nas minhas veias
o mesmo calor do sangue
e sempre o mesmo horizonte
ainda que vago na bruma
e esta sede sempre vive
dum bem que sempre ansiei

(Adolfo Casais Monteiro)

De Café

Entrei no café com um rio na algibeira
e pu-lo no chão,
a vê-lo correr
de imaginação...

A seguir tirei do bolso do colete
nuvens e estrelas
e estendi um tapete
de flores
- a concebê-las.

Depois, encostado à mesa,
tirei da boca um pássaro a cantar
e enfeitei com ele a Natureza
das árvores em torno
a cheirarem ao luar
que eu imagino.

E agora aqui estou a ouvir
a melodia sem contorno
deste acaso de existir
- onde só procuro a beleza
para me iludir dum destino.


José Gomes Ferreira

A liberdade inteira no silêncio

A liberdade inteira no silêncio
de humildes assistirmos ao que somos
qual nascemos, qual somos, qual sorrimos...
na esplendorosa ressonância de estar vivo,
à face de uma luz que morre ou de uma luz que nasce

Luís Adriano Carlos

sábado, maio 26, 2007


Bem sei que ninguém conhece os meus caminhos
Ninguém sabe a paz que eu sinto
em ter este orgulho de andar sem ninguém
e com todos e em tudo;
ninguém bate à minha porta,
eu é que baterei à porta dos outros...

Na estrada sou o médico para todos os desmaios,
Mas ninguém conhece a mão que lhe leva o bálsamo,
E de onde vem a esperança desta sombra amiga.

Silenciosamente só, no meio dos meus companheiros emudecidos,
Dos epitáfios dos camaradas mortos vem extraindo
Letreiros sem palavras para os que hão-de vir,
Que são todos os que nasceram e vejo
Em toda a extensão da minha estrada.

E eu te agradeço, ó pequena voz humilde,
Que me ensinaste a virtude de saber renunciar às aristocracias
[que vêm nos livros de linhagens]
E nunca consentiste que quem quer que seja
Afaste a minha sombra do meu corpo.

(Osvaldo Alcântara Só in Cântico da Manhã Submersa)

Vou agarrar com as duas mãos um punhado de estrelas


Vou agarrar com as duas mãos um
punhado de estrelas, e prendê-las-ei
nos teus cabelos (irás assim, terna,
cintilando pela noite).

Mais tarde, se algum astrónomo, ao
perscrutar o céu, te descobrir, ficará
alvoraçado de entusiasmo (pensará ter descoberto um novo planeta...)

(Hélder Pacheco in Os Dias Comuns)

quinta-feira, maio 17, 2007

Tertúlia de Poetas de Sintra - tomo VIII

E, palavra a palavra, avançamos a rimas largas para o final (provisório, como sempre nestas coisas) das Tertúlias de Poetas de sintra.

Hoje, dando seguimento à nossa incursão pelo coração da romântica Serra, temos como poiso poético a aldeia de Colares, plena de história e tradições literárias.
Fernando Pessoa e José Fernandes Badajós (poeta local) estrão em destaque.

Como sempre, votos para que apareçam, pelas 21h, no Café/Salão dos Bombeiros Voluntários de Colares... a poesia é por conta da casa.

quarta-feira, maio 09, 2007

As minhas mãos caíram com o gesto


As minhas mãos caíram com o gesto
de afagar os teus cabelos e o teu rosto.
Na tua boca um pouco de sorriso
Foi hora de sol-posto.
Foi jeito de pureza que eu tinha de te olhar
foi lágrima nos meus olhos.
E a minha esperança?
E o meu sonho raso de ternura e dor?
O instante amoleceu na minha inquietação
recordações de amor!

(António de Sousa Freitas in Para o Amor o Silêncio)

Álcool

Mais álcool!,
que quero hoje ver a vida cubista!

Quero ver as coisas por todos os lados
sem sair da poltrona onde estou sentado,
só para me rir dela…

Quero ver alargarem-se as janelas
em esgares de perspectiva!

Quero sentir o meu corpo dilatar-se
até rebentar nas estradas!, …

Quero, no intervalo de esperar um novo dia,
que este solo de trompete
me destrua os nervos por completo
e que fique de mim, por hoje,
apenas o gesto cubista e ausente
de quem não lhe correu bem o dia.

(Fernando Ilharco Morgado in Antologia Poética)

Boxe




No mini ginásio do Sport Lisboa e Amoreiras
um rapazola gritou: poesia! poesia
é o cangalho das feiras, onde sempre
chega tarde a melodia!, a camisola
lançada pró tapete com sabor a sujo.
E no entanto, o braço em perfeito;

(António Franco Alexandre in de Quantas Moradas)

sábado, maio 05, 2007

O Guardador de Rebanhos

Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.

(Alberto Caeiro, in O Guardador de Rebanhos)

sexta-feira, maio 04, 2007

Não: não digas nada!


Não: não digas nada!
Supor o que dirá
A tua boca velada
É ouvi-lo já

É ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das frases e dos dias.

És melhor do que tu.
Não digas nada: sê!
Graça do corpo nu
Que invisível se vê.

(Fernando Pessoa, in Cancioneiro)

quinta-feira, maio 03, 2007

Segue o teu destino



Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De arvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

(Ricardo Reis, in Odes)

Deuses


Deuses, forças, almas de ciência ou fé,
Eh! Tanta explicação que nada explica!
Estou sentado no cais, numa barrica,
E não compreendo mais do que de pé.

Por que o havia de compreender?
Pois sim, mas também por que o não havia?
Água do rio, correndo suja e fria,
Eu passo como tu, sem mais valer...

Ó universo, novelo emaranhado,
Que paciência de dedos de quem pensa
Em outras cousas te põe separado?

Deixa de ser novelo o que nos fica...
A que brincar? Ao amor?, à indif'rença?
Por mim, só me levanto da barrica.

(Álvaro de Campos, in Poesia)

É talvez o último dia da minha vida



É talvez o último dia da minha vida.
Saudei o sol, levantando a mão direita,
Mas não o saudei, dizendo-lhe adeus,
Fiz sinal de gostar de o ver antes: mais nada.


(Alberto Caeiro, in Poemas Inconjuntos)