domingo, outubro 29, 2006

Alexandre O'Neill

Um Adeus Português








Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti
(Alexandre O'Neill, in No reino da Dinamarca)

Da Poesia

«Mil poetas arrastam-se e enlanguescem-se prosaicamente, mas a melhor prosa antiga (e semeio-a aqui sem a distinguir dos versos) reluz por toda a parte com o vigor e a ousadia da poesia e representa a imagem do seu furor. Deve-se, certamente, conceder à poesia a superioridade magistral e a primazia no uso da palavra. O poeta, diz, Platão, sentado na trípode das Musas, jorra furiosamente tudo o que lhe vem à boca como a gárgula de uma fonte, sem o ruminar nem ponderar, e escapam dele, em fluxo intermitente, coisas de cor diversa e contrária substância. O próprio Platão é todo ele poético, e dizem os eruditos que era a poesia a teologia antiga e a primitiva filosofia.

É a linguagem original dos deuses.»

(Michel de Montaigne, in Ensaios)

terça-feira, outubro 24, 2006

Continuando a ler Ruy Belo



A escrita de Ruy Belo é como esta foto (a sua mais conhecida, tirada pela mulher, Maria Teresa Belo): evasiva, acima de tudo. Hesitante e incompleta, por vezes, como se o autor duvidasse de si.

"Cinco Palavras Cinco Pedras"

Antigamente escrevia poemas compridos
Hoje tenho quatro palavras para fazer um poema
São elas: desalento prostração desolação desânimo
E ainda me esquecia de uma: desistência
Ocorreu-me antes do fecho do poema
e em parte resume o que penso da vida
passado o dia oito de cada mês
Destas cinco palavras me rodeio
e delas vem a música precisa
para continuar. Recapitulo:
desistência desalento prostração desolação desânimo
antigamente quando os deuses eram grandes
eu sempre dispunha de muitos versos

Hoje só tenho cinco palavras cinco pedrinhas

(Palavra[s] de Lugar, in Homem de Palavra[s])

Pessoas há que vivem para se encontrarem. As outras subsistem imersas num desalento permanente.

segunda-feira, outubro 23, 2006

Portugal Futuro

Em Abril de 1969, Ruy Belo escrevia:



O Portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e lhe chamem elas o que lhe chamarem
Portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a Espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o Portugal futuro.

[in Homem de Palavra(s)]

terça-feira, outubro 17, 2006

Tertúlia de Poetas de Sintra - tomo I

É já na próxima quinta. Para todos os amantes de poesia.






















O mote é "Um poeta no País Possível".

Apareçam e tomem um café ou um Porto connosco.

Os nossos Fólios...

... da autoria de Jorge Cardoso.


Ruy Belo (Queluz, Outubro de 2006)




Alexandre O'Neill (Agualva-Cacém, Novembro de 2006)




António Aleixo (Montelavar, Dezembro de 2006)




José Gomes Ferreira (Rio de Mouro, Janeiro de 2007)




Raul de Carvalho (Algueirão-Mem Martins, Fevereiro de 2007)




David Mourão-Ferreira (Fontanelas-Gouveia, Março de 2007)




Florbela Espanca (Pêro Pinheiro, Abril de 2007)

A história da Tertúlia de Poetas de Sintra em cartaz...

... pela mão de Carlos de Melo.

Ruy Belo (Queluz, Outubro de 2006)




Alexandre O'Neill (Agualva-Cacém, Novembro de 2006)




António Aleixo (Montelavar, Dezembro de 2006)





José Gomes Ferreira (Rio de Mouro, Janeiro de 2007)





Raul de Carvalho (Algueirão-Mem Martins, Fevereiro de 2007)





David Mourão-Ferreira (Fontanelas-Gouveia, Março de 2007)




Fernando Pessoa (Colares, Maio de 2007)


Desenhos de cada poeta tema...

...da autoria de Maria Almira Medina

Ruy Belo (Queluz, Outubro de 2006)




Alexandre O'Neill (Agualva-Cacém, Novembro de 2006)




António Aleixo (Montelavar, Dezembro de 2006)




José Gomes Ferreira (Rio de Mouro, Janeiro de 2007)





Raul de Carvalho (Algueirão-Mem Martins, Fevereiro de 2007)




David Mourão-Ferreira (Fontanelas-Gouveia, Março de 2007)




Florbela Espanca
(Pêro Pinheiro, Abril de 2007)

Mapa de Sessões (clique para aumentar)







E no princípio era o Verbo

Camões e Pessoa. Herberto e Al Berto. Gomes Ferreira e Mourão-Ferreira. Sophia e Florbela. O'Neill e Almada. Aleixo e Nobre, Ramos Rosa e Maria Lisboa. Gedeão. Cesariny e Cesário. Bocage e Botto. Garrett e Guerra. Antero, Gomes Leal, Eugénio, Assis Pacheco, Neto Jorge, Graça Moura, Ary dos Santos, Alegre, Sá-Carneiro, Sena, Natália, Nemésio, Régio, Pessanha, Duarte, Pascoaes, Belo, Torga. Peixoto e Adília. E muitos mais.

Todos eles nos reescreveram.

O Traço Comum dá a partir de hoje os seus primeiros passos.

Nasce em paralelo com uma rede de tertúlias poéticas, um ambicioso programa de divulgação cultural distribuido ao longo de nove cafés do concelho de Sintra. O ponto de partida é a poesia portuguesa.

Este passos são dados a partir e ao sabor de um legado cultural que nos enforma enquanto comunidade. Construir uma língua não é fácil. Eles puseram-no em prática. Mostraram-nos o caminho, o exemplo.

A poesia é o início. Contudo, queremos ir em busca de algo mais abrangente. Guia-nos um objectivo: a divulgação - ou sobrevivência - da palavra escrita, do livro, da língua, da cultura. O que quiserem. Sabemos que não temos mais começos (perdoe-me o Steiner).

Não precisamos.