domingo, novembro 26, 2006

13º Aniversário da Casa Fernando Pessoa

A Casa Fernando Pessoa é um caso raro. É uma instiuição lisboeta, de gema, que cultiva o método de, com pouco, fazer muito em prol da cultura, em especial do livro. Após sucessivas equipas e direcções, com algumas guinadas e zigue-zagues pelo caminho, a CFP manteve-se, venceu resistências, e é hoje um ponto de encontro especial no mapa cultural lisboeta. Acolhedor, interessante nos conteúdos e eventos que propõe e, importante, com a preocupação de não afirmar programas estéticos - acolhendo todas as tendências do complicado meio cultural alfacinha.

No próximo dia 30, é obrigatorio irmos lá "dar uma força". E um abraço, já agora.

3ª Mini-feira do Livro na Biblioteca da Amadora

Mário Cesariny (1923-2006)



















You are welcome to elsinore


Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

Mário Cesariny

quarta-feira, novembro 22, 2006

Meditação na pastelaria

Por favor, Madame, tire as patas,
Por favor, as patas do seu cão
De cima da mesa, que a gerência
Agradece.

Nunca se sabe quando começa a insolência!
Que tempo este, meu Deus, uma senhora
Está sempre em perigo e o perigo
Em cada rua, em cada olhar,
Em cada sorriso ou gesto
De boa-educação!

A inspecção irónica das pernas,
Eis o que os homens sabem oferecer-nos,
Inspecção demorada e ascendente,
Acompanhada de assobios
E de sorrisos que se abrem e se fecham
Procurando uma fresta, uma fraqueza
Qualquer da nossa parte...

Mas uma senhora é uma senhora.
Só vê a malícia quem a tem.
Uma senhora passa
E ladrar é o seu dever – se tanto for preciso!

O pó de arroz:
Horrível!
O bâton:
Igual!

O amor de Raul é já uma saudade,
Foi sempre uma saudade...
(O escritório
Toma-lhe o tempo todo?
Desconfio que não...)

Filhos tivemos um:
Desapareceu...
E já nem sei chorar!

Chorar...
Como eu queria poder chorar!

Chorar encostada a uma saudade
Bem maior do que eu,
Que não fosse esta tristeza
Absurda de cada dia:
Unha
Quebrada de melancolia...

Perdi tudo, quase tudo...

Hoje,
Resta-me a devoção
E este pequeno inteligente cão.

Por favor, Madame, tire as patas,
Por favor, as patas do seu cão
De cima da mesa, que a gerência
Agradece.

Alexandre O'Neill
(in No Reino da Dinamarca, 1958)

sexta-feira, novembro 17, 2006

Tertúlia de Poetas de Sintra - tomo II

Na próxima 5a prosseguem as sessões da Tertúlia de Poetas de Sintra. Para o mote, um nome incontornável da palavra lusa: Alexandre O'Neill.

quinta-feira, novembro 09, 2006

Sigamos o Cherne



(Depois de ver o filme "O Mundo do Silêncio", de Jacques-Yves Costeau)

Sigamos o cherne, minha amiga!
Desçamos ao fundo do desejo
Atrás de muito mais que a fantasia
E aceitemos, até, do cherne um beijo
Se não já com amor, com alegria...

Em cada um de nós circula o cherne,
Quase sempre mentido e olvidado.
em água silenciosa de passado
Circula o cherne: traído
Peixe recalcado...

Sigamos, pois, o cherne, antes que venha,
Já morto, boiar ao lume de água,
Nos olhos rasos de água,
Quando, mentido o cherne a vida inteira
Não somos mais do que solidão e mágoa.

(Alexandre O'Neill, in No Reino da Dinamarca, 1958)

quinta-feira, novembro 02, 2006

Gaivota




Se uma gaivota viesse
trazer-me o céu de Lisboa
no desenho que fizesse,
nesse céu onde o olhar
é uma asa que não voa,
esmorece e cai no mar

Se um português marinheiro,
dos sete mares andarilho,
fosse quem sabe o primeiro
a contar-me o que inventasse,
se um olhar de novo brilho
no meu olhar se enlaçasse

Se ao dizer adeus à vida
as aves todas do céu,
me dessem na despedida
o teu olhar derradeiro,
esse olhar que era só teu,
amor que foste o primeiro

Que perfeito coração
no meu peito morreria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde perfeito
bateu o meu coração

(Alexandre O'Neill)